Na estrada, deslocado pela segunda vez

Testemunho pessoal de um profissional da MSF na Ucrânia, que foge agora de uma guerra dentro do próprio país

© Santi Palacios, 2022

“Em Kiev, ao amanhecer do dia 24 de fevereiro acordei com o estrondo de explosões e com o soar das sirenes antiaéreas. Acomodado no meu pequeno apartamento, senti-me assoberbado de ansiedade. Apercebi-me logo, naquele momento, de que a minha vida e a de muitas outras pessoas nunca mais seria a mesma. Algo irreversível tinha acabado de acontecer: acabara de ser violentamente sufocada a réstia de esperança, que muitos de nós não deixavam morrer, apesar do medo se tornar cada vez mais intenso devido à ameaça constante de uma guerra.

Cresci entre terras planas e montes de carvão, no que hoje é o Leste da Ucrânia. Uma família grande, num apartamento de três quartos, passámos muitas tardes carregadas de gargalhadas, saladas russas e borscht [sopa de beterraba]. Depois de estudar na escola internacional de línguas em Gorlivka, deixei a Ucrânia rumo aos Estados Unidos. Mas, eventualmente, a atração gravitacional que sentia com a minha família puxou-me de volta ao meu país.

A guerra deflagrou em 2014 e fui forçado a mudar-me para Kiev, onde me registei como ‘deslocado interno’. Lentamente, ambientei-me à vida na cidade, trabalhei para organizações da sociedade civil e, mais tarde, tornei-me membro ativo de uma aliança global para combater a pobreza. Eventualmente, o meu caminho levou-me até à Médicos Sem Fronteiras (MSF). Nos esforços da MSF para melhorar e facilitar o acesso a cuidados de saúde no Leste da Ucrânia encontrei uma forma de reter os laços que preservara com uma região que ainda me era muito querida, mesmo estando então a viver em Kiev.

A tragédia no Leste da Ucrânia está agora a assombrar o país inteiro. Num curtíssimo período de tempo, milhões de pessoas viram-se forçadas a deixar as suas casas. Muitas estão deslocadas dentro da Ucrânia e cerca de dois milhões refugiaram-se em países vizinhos. Onde me encontro atualmente, estão todas à minha volta.

A guerra está de volta – e desta vez, mais violenta, brutal, e com uma força, temo eu, que nos deixará a todos marcados.

Estou, outra vez, deslocado. À medida que a guerra atingia Kiev fortemente, com intensos ataques aéreos e combates terrestres, tomei a dolorosa decisão de deixar a cidade. Ficara enquanto, desde o primeiro dia da guerra, centenas de milhares fugiam. Durante alguns dias, tudo o que ouvia eram os sons lancinantes dos bombardeamentos, mísseis e artilharia. Até que um dia, os meus colegas ligaram-me e disseram que um dos últimos comboios humanitários estaria prestes a partir de Kiev. Entrei em pânico. Parecia que a cidade tinha sido esvaziada de vida humana. Apressadamente, enfiei algumas roupas num saco, agarrei nos documentos mais importantes, peguei no carro, e saí de Kiev.

Agora, estou na estrada e sou um pequeno ponto numa vasta e infinita caravana de pessoas, que se amontoam em direção à Ucrânia ocidental. Sinto-me perdido e desorientado, furioso com esta guerra horrenda, chocado com o sofrimento gratuito infligido nas pessoas. Temo o que possa vir a seguir.

Ainda assim, sinto-me mais sortudo do que os meus colegas que estão a viver o inferno no Leste da Ucrânia. O cerco de Mariupol enche-me de raiva; Volnovakha tornou-se numa cidade fantasma, destruída pelos bombardeamentos. Escolas, hospitais e casas sofreram danos. Todos os progressos feitos no Leste da Ucrânia desde a guerra em 2014 estão agora em escombros.

Nos últimos tempos, no Leste da Ucrânia tem-se trabalhado para solidificar as instituições e reforçar os serviços públicos. Algumas organizações até tinham já deixado de prestar ajuda humanitária, para passarem a oferecer apoio ao desenvolvimento na região. Em vez de providenciar diretamente serviços de saúde, a MSF passara a colaborar com o sistema de saúde de forma a melhorar o acesso a cuidados médicos. Ajudámos uma rede de voluntários de saúde nas comunidades para apoiarem pessoas residentes em aldeias remotas – muitas delas idosas – de forma a serem diagnosticadas e a receberem tratamento com celeridade e a obterem medicamentos das farmácias.

Com esta dramática mudança de cenário, o trabalho que antes fazia com a MSF já não é possível. Muitos dos meus colegas encontram-se na mesma situação. Mas mesmo até nestas circunstâncias de provação, têm trabalhado arduamente para prestar assistência médica de emergência.

Quero fazer mais para ajudar. Mas estou no meio de um turbilhão, onde as habituais certezas da vida colapsaram à minha volta. Necessitaremos de imensa capacidade de superação para recuperar desta força bruta que se abateu sobre nós.”

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